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(fonte: http://picture-cdn.wheretoget.it/j5pxwe-l-610x610-high-tops-boots-work-casual-mens-shoes-men-tumblr-cute-brown.jpg)
Parte I
Recordava aquela imagem em papel amarelecido como se tivesse sido revelado no dia anterior. Todos os dias os soldados por ali passavam e nós, na expectativa de receber alguma coisa, aproximávamo-nos sem nos deixarmos assustar pelas armas e pelas fardas e estendíamos as mãos, pedinchando coisas. Às vezes tínhamos sorte. Recebíamos bugigangas que os meus pais trocavam logo depois por comida ou roupa lavada.
Era muito raro andar calçado. Quem tinha essa sorte eram quase sempre os mais velhos, que já sabiam defender-se e não os deixavam roubar. Lembro-me de às vezes ter os pés em ferida porque me cortava nas pedras do chão.
Os soldados andavam sempre por ali. Na altura não percebia muito bem o que faziam com aqueles objetos pretos nas mãos. Com o tempo fui percebendo que aquilo tanto nos podia defender como matar, dependendo das mãos que os seguravam.
Apesar daqueles tempos terem sido dolorosos, milhares de histórias ficaram para contar.
- Avô, avô! Andas de novo a mexer na caixa das fotografias antigas? – E abeirando-se de mim, o pequeno João mergulhou os olhos dentro da caixa de sapatos, preenchida com aqueles pedaços de papel cinzento e amarelo, deitando aquele olhar curioso de quem sabe que ali há mais histórias do que as que o papel conta. Peguei-lhe pelos braços e sentei-o no meu colo.
Parte II
- Queres ouvir uma história? – E comecei a contar-lhe a história dos meus primeiros sapatos e, no fundo, a história daquela caixa velha.
O dia estava de sol, mas um sol tão forte que nem dava vontade de brincar na rua àquela hora. Tinha ouvido dizer que os soldados às vezes pagavam algumas moedas em troca de pequenos favores. Lavar alguns tachos, lavar alguma roupa, engraxar as botas… Eu era muito pequeno, mas um dia senti-me desafiado a saber se também seria capaz de arranjar algumas moedas para levar para casa. Aproximei-me do acampamento mais próximo, enchi o peito de coragem e entrei numa das tendas.
Estava escuro e menos quente do que lá fora, embora estivesse um ar abafado. Três homens de farda pareciam absorvidos nas suas tarefas “domésticas”, entre escrita e limpezas. Um deles levantou-se de repente meio surpreendido deixando escorregar a bota que trazia na mão.
Parte III
- Senhor, posso ajudá-lo com isso?
- Ajudar-me, tu? Mas percebes alguma coisa de engraxar botas da tropa?
- Claro que sim! – Menti. - Sou o melhor engraxador de botas do mundo. – Sorri-lhes.
- Quero ver isso. Chega-te aqui. - Disse, estendendo-me uma bota e o que parecia ser uma escova preta com os pelos já muito curvados. Peguei nos dois objetos e comecei a esfregar um no outro, com toda a minha força. Os três soldados começaram a rir. Mas quanto mais riam mais eu esfregava.
- Senhor, vou mostrar-lhe que sou capaz de as deixar tão brilhantes que vai poder ver-se nelas. Vou mostrar-lhe mereço uma moeda.
- Para que queres tu uma moeda? – Perguntou um deles.
- Para juntar a outras moedas e um dia poder comprar um par de sapatos.
Desde aquele dia e todos os dias a partir dali, aqueles três soldados só me chamavam a mim para lhes engraxar as botas. Começaram a vir também mais soldados trazer as suas botas e por cada par de botas bem engraxado recebia uma moeda pequena. Sempre que os braços me doíam eu pensava nos meus sapatos e a dor passava. E foi assim que consegui o meu primeiro dinheiro para um dia mais tarde comprar o meu primeiro par de sapatos.
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